quinta-feira, 22 de junho de 2006

Ruivães

Com o olhar sobre a Serra da Cabreira, sentada no sopé da montanha que, ficticiamente construo, solto asas à imaginação e deixo-me conduzir por ela.


Neste estado de pensativa errante, uma questão brota, mais pertinente que as demais: falar num lugar é falar das suas gentes!


Numa viagem pelo tempo, recordo a infância, os percursos a fazer para a escola, por caminhos enlameados e cheios de salamandras. Vejo os campos a serem cultivados por diferentes gerações e amigos que da mesma sorte que eu não gozavam, impedidos de irem à escola.


As histórias contadas ao serão pelos mais velhos fazem-me, ainda hoje, viajar por épocas que desconhecia.


Lembro-me, particularmente, da história de Manuel, que não sendo ruivanense de gema, fez desta terra a sua. Fugido da Guerra Civil Espanhola aqui assentou arraiais e fez família. Com contactos em Espanha, sempre que subia aos montes para guardar os rebanhos que por lá se manteriam durante o Inverno, trazia da raia (o que era crime) cordas, sacholas, cordões e outros a quem tais favores lhe suscitava.


Histórias de fome e de vida! Numa altura em que tudo escasseava e nada era de desperdiçar, pagava-se a côngrua e sob o olhar atento da PIDE escamoteavam-se os passos.


E nas horas que se pensavam mortas seguiam pela ponte de Frades (Misarela) ouvindo a melopeia das águas, no encalço de conseguirem trazer para casa um naco a mais.


Bastava querer e sob a suposta bênção divina ou política fazia-se, como refere Bento da Cruz, na obra “Lobo Guerrilheiro”: “Chegou-me há pouco a informação de que, a pedido do Padre Júlio de Ruivães, capelão do Paiva Couceiro, aquando do ataque a Chaves, a quem o Tinente obedece como um podengo, foram destruídos os tanques da povoação de Chelo (…)”


Aldeias como Tourém, Vila da Ponte, Parada e Ruivães acolheram “clandestinamente” elementos da frente que se opunha ao regime franquista, que tantos crimes hediondos perpetrou.


Uma terra de apelidos pouco habituais que nos devem suscitar curiosidade e indagação como: Gil, Bárbara, Malaínho e Fraga entre outros, povoaram a nobre Ruivães, deixando-a hoje num estado de nostalgia. E se por nostalgia entendermos a ânsia de regresso, a saudade de volver a sua áurea, então é nostálgico este fado!


Caída no esquecimento do edil vieirense e recordada apenas pelo matiz eleitoralista. Ponto estratégico, de gentes e costumes ímpares, o edil tem-na votado ao distanciamento temporal. E a torrente enlameada e sufocante da desertificação que impera, suscita de forma Nietzschiana a música dionisíaca de transmutação e transfiguração da realidade, mormente associada à ideia de vitalidade e apelo à afirmação trágica da vida: o de desejar continuar a viver sem falsos moralismos, acatando a dor e o sofrimento. Qual sentimento trágico que imana na totalidade que a vida é!


Milan Kundera uniria indelevelmente a sua voz neste sopro dizendo: “A gigantesca vassoura que transforma, desfigura, apaga paisagens, trabalha há milénios, mas os seus movimentos, outrora lentos, quase imperceptíveis, aceleraram-se tanto….!


 


 


Carla Silva

1 comentário:

Lucélio disse...

Brilhante texto! Pena é que tão poucas vezes se veja um texto com esta qualidade... Parabéns! Deviam dar azo a que muitos mais com esta qualidade pudessem ser lidos. Passei por aqui por acaso e gostei!