Branco
Fui eu que reparei primeiro que quem jogava com o batalhão das peças pretas quase sempre ganhava. O Gabriel ficou um minuto pensativo, passando em revista todas as nossas partidas de xadrez das últimas semanas e por fim concordou comigo. Jogávamos todas as tardes, depois do almoço, sentados em duas enormes poltronas de pele no escritório da sua casa, porque desde que metemos os papéis para a reforma, aquela era, para todos os efeitos, a nossa profissão. Ele sugeriu, por brincadeira, que pintássemos as peças brancas também de preto, só para ver o que acontecia. E eu, muito sério, disse: «Não, vamos antes pintar as pretas de branco, porque assim o jogo é mais difícil para os dois.» Foi assim que começou. Mal começámos a jogar, percebemos a natureza fantástica e libertadora daquele novo jogo acabado de inventar. À oitava jogada, sem querer, o Gabriel moveu um dos meus bispos para comer o seu pião mais avançado no tabuleiro, mas nenhum de nós se deu conta. A partir daí as peças confundiram-se de tal maneira que no final sabíamos que um de nós tinha ganho, só não sabíamos qual dos dois. Jogámos esse jogo durante algumas semanas, até que um dia Gabriel me recebeu no escritório com uma sugestão ousada: «Vamos pintar de branco os quadrados pretos do tabuleiro.» Eu percebi imediatamente a sua intenção e aceitei: assim as peças moviam-se sem entraves no terreno da batalha, tornando possíveis estratégias até aí nunca imaginadas. Além disso, algumas peças brancas desapareciam camufladas no tabuleiro nevado proporcionando verdadeiros ataques inesperados. Uma semana mais tarde – estávamos tão embrenhados naquela nova modalidade de xadrez que já nem nos lembrávamos que um mês antes o tabuleiro havia sido, de facto, um xadrez – eu tinha a minha rainha encosta a um canto, prestes a ser abatida pela última torre do Gabriel quando de súbito recorri a uma estratégia improvisada para escapar: peguei na latinha de tinta branca que mantínhamos no chão ali por perto e com o pincel pintei área ao lado do tabuleiro da mesa em que jogávamos. Depois avancei com a rainha para essa zona. O Gabriel não moveu sequer uma sobrancelha e continuou circunspecto à procura da sua próxima jogada. Nessa noite, a mulher dele encontrou-nos perdidos na luminosidade ofuscante do escritório, a jogar xadrez no tabuleiro indistinguível das silhuetas das duas poltronas, do tapete, da secretária e das estantes com livros, tudo pintado de branco, no mesmo instante em que o Gabriel, com o pincel na mão, se preparava para pintar as próprias calças, na tentativa de fugir com o seu rei ao xeque-mate iminente do meu cavalo.
*****
Paulinho,
aqui vai o ficheiro com o conto prometido. É a minha prenda de Natal para o Blog de Ruivães. Espero que gostem.
Bom Natal e um grande abraço para todos,
David
2 comentários:
obrigado David por mais este conto. estou a ler o teu livro "Histórias Possíveis" e estou a gostar.
um Feliz Natal para ti e toda a família. abraço
Este Doutor com raízes em Ruivães escreve bem e depressa.
Nos nossos dias em que tudo é light, o David aprofunda com rapidez as situações antropológicas e os mistérios recônditos da Alma Humana!
Já li os Contos (Histórias Possíveis). Os eleitos são: "A zanga dos Padres" e "As três Memórias"!
Meu caro: teve um bom Mestre de Filosofia e Lógica. E boas leituras feitas com experiências de vida, apesar de novo.
Nunca nos poderão roubar aquilo que metemos no nosso mundo e que transborda sem sabermos onde meter a abundância!
APROVEITE BEM O DOM!
Parabéns!
Enviar um comentário