domingo, 29 de junho de 2014

«OS FILHOS DO DIABO»


Na Ponte de Misarela, que une as margens do Rabagão, houve pactos com o belzebu para dar filhos a mulheres desesperadas. Como pagamento, a alma e o nome da criança: Senhorinha se rapariga fosse, Gervásio se nascesse varão.

Por oito vezes, a ir ou a vir da central eléctrica onde trabalhava, sempre pelas quatro da madrugada, António Jeremias encontrou, no meio da “Ponte do Diabo”, jovens casais. Já não se lembra da primeira vez que foi convidado para celebrar o baptismo ‘in ventris’. Mas sabe que das oito vezes resultou - nasceu um bebé. Os rapazes chamam-se Gervásio, as raparigas Senhorinha. 

Os baptismos na ponte já não se devem fazer, a julgar pelos registos de nascimento ocorridos nos concelhos de Montalegre e de Vieira do Minho. Nas aldeias próximas da Ponte da Misarela ninguém ouviu falar de baptismos recentes em tais moldes. O pároco da freguesia de Ferral diz que “nos últimos anos não há registo de baptismos a Gervásios ou Senhorinhas, aliás, penso que são nomes que irão desaparecer”. O padre Domingos também garante que “nunca mandei, nem mandaria, algum casal à famosa Ponte”. Se agora os jovens casais não recorrem às virtudes que, segundo a Lenda da Misarela, a ponte e água do rio Rabagão terão, ainda há vinte ou trinta anos, as populações isoladas da região do Barroso, “quando não tinham mais onde recorrer, iam à Ponte, que mal não faz”. 


A LENDA 

O cenário é a velha Ponte da Misarela sobre o rio Rabagão, localizada na aldeia de Sidrós, freguesia do Ferral, concelho de Montalegre. Não se sabe quando este episódio ocorreu, mas na origem da convicção popular está a fuga de um criminoso que, por entre montes e penhascos do Barroso escapava da Justiça. Encurralado, sem possibilidade de atravessar o rio, exclamou: “Por Deus ou pelo Diabo, havia de me aparecer aqui uma ponte!”. E, no instante seguinte, surge a ponte... com o Diabo no centro. “Deixo-te passar se me venderes a alma”, disse. O homem concordou e lá passou a salvo para a outra margem (e à medida que caminhava, a ponte ia desaparecendo nos seus calcanhares). 

O foragido contou, anos mais tarde, a um padre da região o sucedido. O padre, disfarçado de salteador, à meia-noite, colocou-se no penhasco e chamou o Diabo. “Passa-me para o outro lado e dar-te-ei a minha alma”, propôs. Satanás esticou-lhe um pedaço de pergaminho, dizendo: “Assina!”. O padre assinou. O Diabo, com um gesto, faz aparecer a ponte. O sacerdote passa e, enquanto o Diabo esfrega um olho, atira água benta sobre a ponte, fazendo o sinal da cruz. O Diabo, enganado, desaparece num buraco aberto nas rochas. A ponte benzida permanece. Dizem que por lá passaram Santa Senhorinha e São Gervás, a caminho de Santiago de Compostela, para visitar o primo, São Rosendo. 

Estas são as razões que levaram os populares da região barrosã – especialmente rica no que ao lendário respeita - a acreditar que, quando uma mulher, decorridos que sejam dezoito meses após o seu enlace matrimonial, não houver concebido, ou, quando grávida, se prevê um parto difícil ou perigoso, não tem mais que ir à Misarela, à meia-noite. Ali, com marido e familiares, espera que passe um homem, que será convidado a realizar uma cerimónia de baptismo ‘in ventris’. O caminhante tem que encher um copo com água colhida do rio e com a mão em concha deitá-la no ventre da mulher, acompanhando com a seguinte ladainha: “Eu te baptizo criatura de Deus, pelo poder de Deus e da Virgem Maria. Se for rapaz, será Gervásio, se for rapariga, será Senhorinha. Pelo poder de Deus e da Virgem Maria, um Padre-Nosso e uma Ave-Maria”. Segue-se uma lauta ceia. 


O PADRINHO DA PONTE 

António Jeremias fez esta cerimónia oito vezes. “Não acredito muito nisso. Mas deixa-me confuso porque aquelas mulheres tinham tido desmanchos e depois de terem estado na ponte, nunca mais tiveram problemas em engravidar e tiveram filhos saudáveis, pelo que sei”. Crente, ou não, ser “padrinho da ponte” é algo irrecusável. “Isso não, sempre que me pediram aceitei, claro. Houve vezes que fazia aquilo ligeiro, porque estava apertado para chegar a horas ao trabalho. Mas nunca se recusa”. 

Durante 34 anos, seis dias por semana, atravessou a Ponte, em direcção à Central da EDP, no alto da encosta de Ferral, sempre acompanhado de uma pistola. “Eram caminhos escuros, estreitos, e, naquele tempo, existiam muitas raposas, cães bravos e outros animais. Tinha que andar sempre atento”. 

Jeremias não conheceu todos os 'afilhados'. Soube que as mulheres tinham dado à luz um bebé saudável. Também não se recorda bem de todos os episódios. Mas há um que não se esqueceu. “Ela vinha de Currais e não lograva ter filhos – já tinha tido desmanchos. Bem, lá foi à Ponte nessa noite e eu fui o primeiro a passar, claro, passava lá sempre. E um dia, não sei bem, mas menos de um ano após a noite do baptismo, o casal aparece com uma menina nos braços a convidaram-me para ser padrinho na igreja. Ela chama-se Senhorinha, tem 26 anos, estudou, mas foi lá para fora trabalhar porque aqui não conseguiu emprego. Olhe, até o falecido Padre Caridade ficou espantado por aquela mulher ter conseguido lograr uma menina saudável. Ela é minha afilhada mesmo. Sabe que ser padrinho da Ponte não dá obrigações nenhumas, mas da Igreja é diferente.” Jeremias reformou-se quatro anos depois. Dos outros sete ‘afilhados’ pouco sabe. “Um é de Ruivães, outra é de Fafião, os outros são para além dos montes, não sei nada”. Jeremias foi pai cinco vezes e “nunca tive que passar uma noite na Ponte da Misarela." A mulher ri. 


OS BAPTISMOS 

Antes de Senhorinha Gonçalves nascer, sua mãe teve dois 'desmanchos'. Seus pais viviam numa aldeia de Montalegre e, claro, conheciam a lenda da Misarela. Decidiram tentar, “mesmo que a minha mãe não acreditasse naquela história mas, como ela dizia, mal não faria”. Seria apenas uma noite ao relento à espera de um caminhante. Foram. Ele meteu uma pedra dentro do copo. Colocou-se no centro da ponte e largou o copo, preso a uma grande corda, até bater nas águas do Rabagão. Quando o caminhante chegou à Ponte viu-o de copo cheio numa mão, a outra segurava o braço da mulher. Fez-se o baptismo. E passados onze meses nasceu uma menina. “A minha mãe mesmo depois de ter nascido, dizia que não acreditava na lenda. Eu também não acredito! Mas a família sempre achou piada à história”, conta Senhorinha, de 60 anos, a viver em Pisões, Montalegre. 

Senhorinha soube da lenda e do baptismo na ponte “por volta dos nove anos” mas “nunca demos importância à história, no entanto, depois da minha mãe ter estado na ponte nunca mais teve problemas: nasceram seis filhos! No entanto, não digo que foi por causa da lenda”. 

Quando vai à terra e passa junto à barragem de Venda-Nova, o filho, de 20 anos, sempre exclama “Olha mãe, a tua ponte”. “É uma piada nossa”, conta Senhorinha que, no ano passado, deixou de fazer partos. “Eu não acredito na lenda mas acredito no baptismo. Eu também fiz muitos baptismos ‘in ventris’ e nisso acredito”. Talvez por isso, Senhorinha tivesse mantido uma relação próxima com o seu 'padrinho da ponte'. “Já faleceu, mas sempre convivemos. Ele trabalhava na central e era uma pessoa excelente. Ainda hoje visito a sua mulher, a quem trato por madrinha”. Gervásio Oliveira nasceu em Montalegre há 77 anos. Confessa que “não gosto muito de falar nisso. O meu nome é Gervásio e pronto. Não quero saber da lenda”. Lá vai contando que sua mãe foi à ponte já grávida, pois "parece que os primeiros meses foram ruins. O meu pai não achou boa ideia, mas foi”. 

Gervásio diz nunca ter conhecido o ‘padrinho da ponte’. “Nunca falamos disso. Eu soube da história por um primo. A minha falecida mãe é que acreditava nessas histórias.” Gervásio não quer falar mais da lenda, mas confessa que, por duas vezes, atravessou a Ponte. “Olhe, mal não faz”. 


OS DESCENDENTES 

Uma grande percentagem dos Gervásios registados nos registos civis da região Norte indica que a origem do seu nome não está, directamente, ligado à lenda da Misarela. António Gervásio, autarca e residente em Braga, deve o nome ao padrinho de baptismo. “Ele já faleceu, mas parece que ele sim, chamava-se Gervásio porque a sua mãe passou a noite na Misarela." 

Também Gervásio Poças, psicólogo do Porto, natural do Salto, Montalegre, afirma que “nada teve a ver com a ponte. Chamo-me Gervásio por causa do meu tio-avô Gervásio, esse sim filho da lenda, ou melhor, a mãe dele parece que recorreu à ponte. Mas, realmente, é nome muito pouco vulgar. Não há muitos pois não?”. Cada vez há menos. E o padre Domingos prevê que Gervásio e Senhorinha irão desaparecer. Nos registos civis não aparecem há muito crianças com estes nomes. 

Para conhecer a ponte basta que encontre a estrada entre Braga e Chaves, a nacional 103, até Ruivães. Depois de passar o edifício/sede dos Bombeiros Voluntários de Ruivães encontrará uma placa informativa. Basta virar à esquerda e descer até chegar a um entroncamento. Junto à confluência do rio Rabagão com o rio Cavado estacione a viatura e percorra a pé, cerca de um quilómetro, até chegar à ponte.

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2 comentários:

Anónimo disse...

No próximo fim-de-semana estas lendas serão recriadas no próprio local, na grandiosa Ponte da Misarela que indubitavelmente une os lugares de Frades e Sidrós, as freguesias de Ruivães e Ferral, os concelhos de Vieira do Minho e Montalegre e, os distritos de Braga e Vila Real.
O Rio que nos separa, a ponte que nos une.

Paulo Miranda

Anónimo disse...

Muitas vezes a história e a lenda e a ficção e a realidade dão-se as mãos, transformando-se nos alicerces sobre os quais o povo constrói ou cria os seus mitos.
Por vezes há coincidências difíceis de explicar e todos sabemos como a psique exerce a sua influência no psico-somático.
Seja como for, é bom que não deixemos morrer estas histórias e estas estórias porque, de algum modo, são elas que nos dão identidade e estabelecem a diferença.
Quanto aos nomes próprios de Gervásio e Senhorinha oxalá continuem a ser usados, com o mesmo intuito de preservar algo que é muito nosso.
Afinal, por toda a parte surgem nomes estrangeirados, muito modernos, mas que nada têm que ver com a cultura portuguesa.
Até meados do século passado era costume baptizar as crianças com os nomes dos pais, dos avós ou dos padrinhos e, mais remotamente, com o nome do Santo Padroeiro da terra natal ou do Santo inscrito no Calendário Litúrgico do dia do nascimento.
Conheci vários Josés nascidos a 19 de Março; António dos Reis, nascido a 6 de Janeiro; Maria Bebiana, nascida a 2 de Dezembro; Maria do Natal, nascida a 25 de Dezembro, etc.
Mas nessa altura "andava Deus pelo mundo", como se costuma dizer.
A descristianização que se tem feito sentir, sobretudo nas últimas décadas, até na atribuição dos nomes próprios tem exercido a sua influência.
Ruivanense Adoptivo