Um
dos traços mais impressionantes da civilização do Norte de
Portugal é certamente a mestria na construção de granito. Nas
casas, nos muros, nos suportes, nos monumentos, a pedra constitui
sempre o principal material de construção. Terrenos de maciço
antigo dispõem de granito, de xisto e de quartzite. A ultima rocha é
muito dura, pesada e difícil de trabalhar; o seu uso é limitado a
raras povoações muito rústicas assentes nas próprias surgências,
usando-se em muitas delas a par com o xisto. Este extrai-se das
pedreiras em lascas que não carecem de nenhum preparo para se
sobreporem, ou em placas de ardósia, usadas como cobertura em certas
áreas de montanha e, nalgumas cidades (Porto, Viseu, etc.), como
revestimento de paredes de tabique. Mas é raro que o xisto dê
grandes blocos resistentes: nas casas humildes recorre-se à madeira
para os lintéis das portas, nas melhores às ombreiras de granito.
Alguns castelos de xisto, grosseiramente aparelhados, têm também
cunhais de granito, lavrados com outro esmero. O papel essencial que
desempenham na construção pode avaliar-se pela pena aplicada a
certos deles na Idade Média: retirar-lhes os cunhais; na falta deste
apoio, o resto da muralha não tardava a ruir. Os reis castigavam
assim os atrevimentos feudais de certos senhores, tão ciosos da sua
autonomia como aqueles da centralização monárquica. Onde os dois
materiais existem lado a lado, a preferência pelo granito é
manifesta. Em terras xistentas pode dizer-se que qualquer construção
importante – igreja, castelo ou solar – raro é que não empregue
esta rocha. É portanto no granito que se devem procurar as
expressões mais perfeitas, ou mais ousadas, de uma arquitectura
popular de pedra.
A
extracção, ainda hoje, é feita à mão e por processos
rudimentares (figura 1). Uma barra fina e aguçada, cuja ponta se
mantém alternadamente em duas posições cruzadas, vigorosamente
martelada, funciona como broca. Um tiro de pólvora de fogueteiro é
o máximo com que a técnica moderna contribui. O alvião, a
picareta, o martelo e a marreta fazem o resto. Para obter uma
fractura alinhada, marcam-se os guilhos ou cunhos uns pontos
pouco espaçados; enterrando-os na rocha por percussão, esta não
tarda a estalar. Os blocos assim obtidos, desbastados e alisados,
podem tomar a forma que se deseje.
Usam-se
na construção de paredes de casas vários tipos de aparelho. Nas
habitações mais antigas e de tipo mais rústico, nos anexos de
lavoura, empregam-se blocos de várias formas e tamanhos, que se
ajustam e travam pelas próprias irregularidades (est. IV); o uso de
argamassa não é geral e denota um aperfeiçoamento do processo de construção. Os cunhais e molduras são, mesmo em habitações
humildes, feitos de grandes blocos regulares. As boas casas de
aldeia, muitas vezes datadas do século XVIII – correspondentes a
um período de prosperidade alimentada pelas minas do Brasil, quando
o Norte ministrava já grandes contingentes à emigração – usam
um aparelho regular, de blocos grandes mas desiguais, tão
perfeitamente sobrepostos que dispensam argamassa (est. V). Os
enormes lintéis das portas são quase sempre a maior pedra da
construção. Estes tipos ocorrem em todo o Norte granítico de
Portugal. Os solares da fidalguia rural tomam quase sempre um cunho
artístico e a pedra aparece neles finalmente lavrada (est. V e VI).
No
Minho tem-se generalizado modernamente um tipo especial – a paleta
- , um bloco rectangular sempre na mesma dimensão, que se sobrepõe
com regularidade, desencontrando as juntas verticais. Com grande
firmeza de mão, os pedreiros fabricam dezenas delas ao fim de um
dia. Eles próprios gabam as suas vantagens: sempre iguais, fáceis
de transportar, permitem mudar uma casa de um sítio para outro
aproveitando o material de que é feita.
(…)
O
maior virtuosismo no trabalho do granito está, porém, nos esteios
de vinha, que podem alcançar três metros de altura, com uns dedos
apenas de largura (ests. VII e VIII B). Assim como a pasta é o
granito talhado em «paus», altos, finos e incrivelmente direitos.
Tão delgados que não resistiriam ao transporte individual: assim,
vêm da pedreira geralmente aos pares, apontando-se os guilhos para a
separação final no lugar onde vão ser utilizados. A distribuição
dos esteios, destinados a suspender as ramadas, é proximamente a da
vinha alta ou de enforcado. No planalto da Beira Alta, onde se
pratica com grande generalidade a rega à picota, usam-se, a par da
forquilha de madeira, um ou dois esteios de granito, mais baixos e
mais largos que os de vinha, onde gira a vara que forma o balancé.
Onde
a arte do granito alcança maior finura é geralmente no espigueiro
ou canastro para secar as maçarocas de milho (ext. IX). Na origem,
este anexo inevitável de toda a casa rural é uma espécie de cesto
de vime entrançado e coberto de palha, donde lhe vem um dos nomes
mais conhecido. Foi talvez a introdução do milho americano que
suscitou, pela maiores colheitas, o emprego de construções mais
vastas e duradouras. Junto do espigueiro fica a eira, uma simples
laje natural ou, na falta dela, uma construção de blocos de
granito, de grandes dimensões; noutros lugares usa-se a eira de
terra batida, que se prepara todos os anos antes das malhas, amassada
com bosta e calcada a pé de ovelha. Eira permanente e espigueiro
acompanham, na Beira Litoral e no ocidente de Trás-os-Montes, a
difusão do milho como cereal preponderante no preparo do pão.
Em
todo o Norte atlântico os limites dos campos são formados de
renques de árvores ou arbustos; mas as bouças, onde se roça o mato
e crescem os pinheiros e carvalhos, e os lameiros ou prados
permanentes, ao mesmo tempo lugares de pastagem e corte de feno, são
cuidadosamente resguardados com muros de pedra solta. Da mesma forma,
nos declives, os canteiros ou arretos destinados a
suster a terra. As calçadas de grandes lajes são frequentes, nas
ruas e largos das cidades e lugarejos e nos caminhos e serventias.
Algumas aproveitam as velhas estradas romanas, outras continuam o
mesmo processo de construção. Um passeio elevado acompanha as ruas,
onde se curte o estrume, e o fundo dos valeiros empapado nas águas
dos lameiros. São de pedra as poldras com que se atravessa o regato
e o pontão rústico com que se passa o ribeiro: não apenas suportes
mas as próprias «pranchas» que cobrem o vão entre eles.
Utensílios
de granito, além das mós e das pedras de lagar, reduzem-se à
salgadeira, onde se guarda a carne e a gordura de porco, à pia dos
cevados e à escudela das galinhas, certamente sugeridas por simples
cavidades praticadas na rocha, também de largo emprego; às vezes
usam-se «argolas» encastradas nas paredes das casas ou quinteiros,
para prender as montadas, que no Sul são sempre de ferro, excepto
nas regiões calcárias onde também se fazem de pedra.
O
Minho mostra assim, no trabalho do granito, todos os processos
correntes e ainda os mais finos, que aí são confinados. Uma
aplicação à técnica moderna é o calcetamento das estradas
principais com paralelepípedos, preparados nas pedreiras junto a
Vila Nova de Gaia, apreciados dos construtores pela sua duração e
dos automobilistas pela segurança com que as rodas se agarram ao
piso. Nos aspectos da natureza e nas obras humanas, o granito é um
traço essencial da paisagem da maior extensão do Norte do País.
Segundo a formula em voga, se existe uma «civilização do granito»
é este um dos lugares do globo onde ela se torna uma expressão
mais completa. (2)
(1)
Emprega-se aqui «arte» no sentido popular e corrente, onde cabe
também o sentido restrito da arte culta.
(2)
Um geólogo minhoto foi sensível a esta originalidade:«Tirem ao
homem do noroeste peninsular este maravilhoso elemento e será toda
uma civilização que desaba.» (Carlos Teixiera, Alguns aspectos
da geologia dos granitos do Norte de Portugal, Porto, 1945)
Retirado
do livro GEOGRAFIA E CIVILIZAÇÃO de Orlando Ribeiro
Fac-Simile da 1ª Edição
(1961) de 2013.
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