A publicação das Ordenações do
Reino e a reforma dos forais no reinado de D. Manuel (1495-1521)
terão tido um papel determinante na municipalização do espaço
político do reino, ou seja, na universalização do modelo concelhio
como unidade administrativa e judicial de primeira instância, como
tal reconhecida e identificada no primeiro numeramento. Se no período
medieval é possível contrapor um país «senhorial» e um
«concelhio», desde finais do século XV, pelo menos, tal dualismo
perde muito do seu significado. Nas terras da Coroa, o modelo
concelhio tende a comunicar-se das grandes para as pequenas
povoações, ao mesmo tempo que tanto umas como outras foram sendo,
em muitos casos, doadas a senhores leigos pelos reis da dinastia de
Avis, apesar de frequente oposição das respectivas câmaras. Por
seu turno, o mesmo modelo municipal, tendeu a emergir em muitas
terras senhoriais mais antigas. No processo de municipalização do
território, a intervenção da Coroa e a codificação das fontes do
Direito desempenharam, indiscutivelmente, um papel relevante.
Marcos assinaláveis nesse terreno
terão sido, certamente, a legislação de 1391 sobre os juízes de
fora, corregedores e pelouros, mas sobretudo, com os antecedentes que
se conhece, a compilação das Ordenações do Reino no tempo de D.
Afonso V, concluída em 1446 ou 1447. Aí se retomou, de resto, a
legislação anterior que tendia a salvaguardar a autonomia dos
concelhos mesmo nas terras senhoriais. Apesar da sua lenta difusão,
determinada pelo tempo de produção dos necessários manuscritos,
uma vez que ainda não se podia dispor da imprensa, as Ordenações
definiram, com uma clareza sem precedentes, as formas de provimento
dos ofícios camarários e as suas competências. Delimitaram, assim,
um modelo e contribuíram decididamente para o impor. Já com recurso
à «nobre arte da impressão», a publicação de 1504 do «Regimento
dos Oficiais da Cidade, Vilas e lugares destes Reinos» e, sobretudo,
das Ordenações Manuelinas (1512-1513) consagraria o referido modelo
municipal, com os necessários aprofundamentos ulteriores, por mais
três séculos – durante os quais, de resto, a própria malha
concelhia, composta de oito centenas de câmaras, registaria poucas
alterações. Os municípios consolidaram-se e não careciam de
reuniões de Cortes para se fazerem ouvir, pois era possível enviar
petições ao rei na ausência de tais assembleias. Note-se que, em
rigor, houve três impressões das Ordenações (1512-1513, 1514 e
1521), registando-se apreciáveis diferenças entre esta última e as
primeiras. Acresce que durante o reinado de D. Manuel se publicou uma
grande quantidade de «regimentos»: além do referido, foram
impressos o da Casa da Mina, o das Sisas, o das Comarcas, e as
Ordenações da Fazenda e da Índia. Houve ainda uma tentativa,
embora falhada, para unificar os pesos e medidas, tomando Lisboa por
padrão.
A reforma manuelina dos forais
(1497-1520) veio completar de forma inquestionável essa obra de
uniformização. De facto iniciou-se ainda no inicio do reinado de D.
João II, em 1481, quando se deu ordem para que recolhesse à Corte
todos os forais antigos, embora só fosse retomada muito mais tarde.
Ao invés do que ocorrera com as cartas de foral concedidas na
primeira dinastia, as cartas de foral reformadas deixaram, salvo
algumas excepções, de conter normas relativas à administração e
ao Direito particular estatuído para cada terra, uma vez que estas
normas obedeciam agora ao modelo geral definido nas Ordenações. O
que os forais novos herdaram dos forais antigos foi quase só a
discriminação dos direitos e encargos devidos, em cada concelho ou
território, à Coroa ou aos seus donatários, os quais se manteriam,
com algumas alterações impostas mais pelo uso que pelo Direito, em
pleno vigor até à sua abolição em 1832. Note-se que a delimitação
desses direitos não deixou de colocar dificuldades e de gerar muitos
conflitos nos séculos subsequentes, particularmente nos casos em que
se pagava pesados direitos sobre a produção agrícola. Acresce que
em 1504 se iniciou a Leitura Nova, obra de recompilação dos
diplomas régios antigos (uma recompilação legislativa, portanto),
a qual só terminaria em 1552 e se distinguiria pela qualidade das
iluminuras que adornam os frontispícios da maior parte dos códices.
Depois, ao que parece, de várias
tentativas levadas a cabo desde o ultimo quartel do século XV, muito
contestadas e parciais, a Coroa teve finalmente condições para em
1527 efectivar o primeiro grande «numeramento», isto é,
recenseamento das povoações, abrangendo todo o espaço continental
da monarquia portuguesa. De forma explicita, um dos seus pressupostos
era a universalização da instituição concelhia partilhada agora
por cidades e vilas pois, como se indicava ao corregedor de Coimbra
em 1527, «folgarei muito de saber quantas cidades e lugares há na
vossa correição e os nomes deles (…) e mando que logo tanto que
esta vos for dada mandeis um escrivão (…) a cada uma das cidades,
vilas e lugares dessa comarca e em cada um deles escreverá quantos
moradores há». No entanto, o numeramento só seria concluído em
1532 e com uma qualidade muito desigual. Um dos entraves a obra
melhor e mais completa parece ter sido as resistências senhoriais à
entrada dos oficiais régios. Entre outros casos, destacam-se as
terras do duque de Bragança, o maior senhor leigo, com 56 municípios
(mais de 7 por cento do total nacional), que gozavam de isenção da
correição, ou seja, onde o corregedor régio não podia entrar.
Pelo menos no Minho e no Alentejo, foi a própria administração
ducal que se encarregou de fazer o levantamento populacional. De
resto, a divisão do reino em comarcas, territórios da jurisdição
de um corregedor que julgava em apelação das decisões camarárias,
iria sofrer sucessivas alterações nos primórdios do século XVI,
passando das seis que existiam em finais da Idade Média (Minho,
Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e Algarve) para 14, e
depois 26 já em 1527-1532. As antigas comarcas iriam substituir, no
entanto, entre outras, como forma de descrição do território e de
organização de alguns expedientes da administração central.
“História de Portugal” de Rui
Ramos (coordenador), Bernardo Vasconcelos e Sousa e, Nuno Gonçalo
Monteiro. Ano 2009
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