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«Passando há dias, em
Ruivães, a velha terra serrana do concelho de Vieira do Minho, que já teve
honras de vila e até de concelho e onde, em 1837, se feriu a última batalha
entre setembristas e cartistas, no termo das lutas constitucionais,
lembramo-nos de que, numa das aldeias ali perto, nascera o pai do grande poeta
Gonçalves Crespo, hoje quase inteiramente esquecido.
Embora visse a luz do dia
no Rio de Janeiro, a verdade é que Gonçalves Crespo está preso ao distrito e
até à cidade de Braga, por muitos e variados laços de sangue, de afecto e de
ideologia. Tanto o avô como o pai eram descendentes de humildes famílias de
lavradores do lugar de Zebral, da freguesia de Ruivães; um dos seus maiores
amigos e mais directos companheiros de estudo em Coimbra e das boémias e lides
literárias, ainda que um pouco mais velho do que, foi precisamente o poeta JoãoPenha, natural de Braga; colaborou nas folhas bracarenses; e aqui veio também a
falecer, aí por alturas de 1870, o seu pai, de nome António José Gonçalves Crespo
que, como tantos outros minhotos, havia emigrado na adolescência, primeiro para
Lisboa e depois para o Brasil, em cata de fortuna.
Ñão foi decerto por mero
acaso que se reuniram e articularam todas estas significativas coincidências. A
alma, profundamente sensível, de Gonçalves Crespo, deve ter haurido no quadro
geneológico da sua família e nas recordações e descrições que ela lhe
transmitiu a seiva criadora da sua inspiração e do seu sonho de artista e de
imaginativa. A mãe, uma indígena do sertão brasileiro, foi, sem dúvida, a
suprema responsável pela sua ardente, tropical fantasia, pelo sopro de
voluptuosidade que freme na sua obra e pelo sentido de cor naturalista das suas
opulentas imagens, cinzeladas numa forma impecável, mas do pai, em cujos olhos nunca
se extinguiram as lembranças dos montes, dos vales, das fragas e dos ribeiros
da sua infância, à sombra dos contrafortes da Cabreira, herdou, directamente, a
nostalgia, o bucolismo meditativo, a expressão idílica, a delicadeza amorosa e,
afinal, o próprio culto íntimo e inalienável da poesia, que é, como definiu
Antero de Quental, a «evidencia da alma».
Os seus versos dos
«Miniaturas» e dos «Nocturnos», de transbordante espontaneidade, têm frescura,
a elegância e a palpitação quase musical, no ritmo ondeante em que decorrem, de
pequenas telas pintadas com tintas macias e fulgurantes, como nas admiráveis
composições. «A venda dos bois», «Algum» e «O juramento do árabe» ou nos
sonetos «Mater Dolorosa» e «Na aldeia». O seu coração desvenda-se com nitidez
em cada motivo e a sua apurada sensibilidade estética vibra e denuncia-se no
recorte gracioso de cada rima.
Pertencendo à galeria dos
grandes poetas da segunda metade do século XIX, tão fértil em astros gloriosos,
António Cândido Gonçalves Crespo, bacharel em Direito pela Universidade de
Coimbra, deputado às legislaturas de 1879 e 1881, por um dos círculos da Índia
(apesar de pouco o seduzirem as intrigas e as cizânias da política
profissional, tão frequentes nesse tempo), redactor do «Diário da Câmara dos
Pares», foi, antes de tudo, fundamentalmente, um poeta por vocação, por
destino, sagrado no erço pelos deuses do Olimpo, como se lhe houvessem colocado
uma lira de oiro entre os dedos inquietos do crioulo. Ao lado de António Feijó,
Fernando Caldeira, conde de Monsaraz, Guilherme de Azevedo, Cesário Verde,
Simões Dias, João de Lemos e João Penha, para só citarmos alguns que, de uma
maneira ou de outra, mais se assemelham, nos temas ou nas características da
métrica, pode dizer-se que encheu plenamente uma época, não obstante haver
morrido, vítima de tuberculose, com menos de 40 anos de idade.
Delida pelo perpassar
impiedoso do tempo, a sua memória, assinalada no cunhal de uma rua de Lisboa.,
em tributo de justiça póstuma, parece já nada representar para a história
literária do nosso país e apostaríamos dobrado contra singelo que pouca gente
saberá, não diremos no concelho de Vieira do Minho, mas até em Ruivães, que
dali partiu, daquele obscuro alto de Zebral, o grande tronco paterno de onde
emergiu uma das mais notáveis vergônteas da literatura nacional.
Nele havia um misto de
subtis personalidades: o contemplativo de arroubos quase místicos, o parnasiano
fascinado pelas coisas soberbas e decorativas da existência, o intuicionista
que sabia dar ao poema uma fluência maviosa e uma plasticidade estrófica – e
ainda o enternecido amigo e paladino das crianças, como o comprova esse
encantador livro de contos que, em 1882, um ano antes de sucumbir, deu a lume,
escrito de colaboração com sua mulher, a excelsa educadora Maria Amália Vaz de
Carvalho, e destinado às escolas primárias.
O seu casamento – comunhão
de dois espíritos superiores – trouxe-lhe a paz interior, o impulso construtivo
das aves que começam a formar inebriadamente o ninho tépido do seu amor e essa
ventura tranquila, diríamos casta, de dois temperamentos capazes de se
entenderem e completarem no essencial, mas a morte, sempre escarninha para os
poetas, não permitiu que a sua felicidade durasse muito: cortou-a cerce,
brutalmente, como se a invejasse, transformando depressa a risonha claridade
matinal na sombra caliginosa da noite, isto é: antes de terminar o ciclo
natural do dia.
Enquanto o carro lestamente
rolava pela estrada, agora atapetada pelas folhas caducas do Outono, que se
desprendiam dos castanheiros e dos carvalhos como as quimeras da mocidade, um
instante apenas verdejantes, tombam céleres nos nossos corações, íamos evocando
mentalmente o obra, não muito extensa, mas bem representativa e flamejante,
desse hierático cantor da mulher, da paisagem, do sol, dos aromas e de todas as
emoções que o desdobrar da vida proporciona aos impressionistas do seu quilate.
No cenário agreste e
luxuriante da imponente zona de Ruivães, com os seus maravilhosos contrastes
entre os abismo, a floresta, os vales, a serenidade do céu, as cachoeiras, as
penedias e os alcantis, a figura de Gonçalves Crespo avultou no nosso espírito
com a força poderosa de uma ressurreição que se esboçasse na distância …
Posto que ali não nascesse,
sorvera, através da hereditariedade familiar, tão longínqua, toda a beleza e
todo o húmus daquele severo e colorido recanto do Minho, já na sua transição
para Trás-os-Montes.
A sua musa, cálida e
requintada, soubera interpretar, em filigranas primorosas, instintivamente, o
próprio lirismo que a alma do pai, tão portuguesa, um dia levara para o Brasil,
na aventura saudosa do emigrante minhoto. – A.M.»
Artigo publicado na «Crónica
de Braga» do jornal «O Primeiro de
Janeiro» de 5 de Novembro de 1964 e “transcrito,
com a devida vénia” no jornal «Comércio
de Vieira» nºs 1232 e 1233 de 25 de Novembro e 15 de Dezembro de 1964,
respectivamente.